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Ex-presidiário faz mestrado, vira professor e cria bibliotecas em SP

23 DE março DE 2017
Hoje com 37 anos, Itamar Xavier Camargo é professor de artes, aluno de mestrado, dá palestras e até escreveu livro. Mas sua realidade já passou bem longe do ambiente acadêmico.

Parou de estudar aos 13, se envolveu com drogas e só foi concluir o supletivo após cumprir pena por assalto. Desde 2011, comanda o projeto Leitura Campeã, que já arrecadou cerca de 20 mil livros e criou 11 bibliotecas na região de Presidente Prudente (SP).

Cresci numa favela de São Paulo. Adorava assistir TV na casa dos vizinhos, já que na minha não tinha. Outra diversão era brincar na água que descia pelos córregos nos dias de chuva, mesmo com todo o lixo e esgoto. Parecia aqueles toboáguas que achava que nunca iria ver na vida.

Tinha seis anos quando testemunhei um assassinato pela primeira vez. Estava na mercearia do bairro quando ouvi os tiros. Ensanguentado, vi o homem agonizar no chão até parar de respirar.

Meus pais eram moradores de rua – ele era alcoólatra, e ela sofria de transtornos mentais. Fui criado por um casal de tios que brigava diariamente. Além de insultá-la, ele também batia nela. Nunca presenciei nenhum tipo de afeto entre eles.

A vida infeliz que minha tia levava fazia com que me tratasse com impaciência e intolerância. A forma como somos criados tem influência sobre o adulto que nos tornamos, mas as escolhas que me levaram pelo caminho que tomei sempre foram minhas.

Na casa deles tinha o que comer e foi lá que aprendi a tomar banho todos os dias. Mas o convívio com meus tios foi piorando. Fui crescendo enquanto eles perdiam o controle sobre mim. Aos 13 anos, fui morar com a minha avó.

Consegui um emprego como office boy, mas não me sentia motivado. Logo depois, conheci uns rapazes que me perguntaram se eu já tinha usado droga. Menti que sim, para ser aceito. Queria pertencer a um grupo.

Conheci traficantes e fui me afastando do convívio social. Passava dias sem dormir, usava todo o tipo de droga e já quase não via minha avó. Comecei a precisar vender o que tinha para sustentar meu vício. Me desfiz de sapatos, roupas e, quando não tinha mais nada, passei a roubar.

Detido pela primeira vez aos 16 anos, fui para a Febem [atual Fundação Casa]. Dormíamos amontoados, com os pés na cabeça do outro.

Lá dentro, só enxergávamos o dinheiro que traficantes e criminosos ganhavam e tudo mais que não parecia ser possível de conseguir com trabalho honesto. Mas, nos períodos de ócio, comecei a tomar certo gosto pela leitura. Foi quando conheci um professor de artes que me incentivou a aprender algumas técnicas de pintura.

Um dia, durante uma rebelião, fugi. Me senti como um herói. As mulheres pareciam se atirar em meus braços. Para quem está na periferia, é bacana ser criminoso.

Do lado de fora do muro, deixei os livros e voltei para o crime. Tentei assaltar um casal e fui baleado pelo homem, que era policial. Mesmo ensanguentado, consegui fugir e me esconder.

Quando me recuperei, senti olhares de admiração me cercando, o que satisfazia a carência que sentia. Era conhecido, e a polícia queria me pegar de qualquer jeito. Aos 22 anos, fui preso por assalto a mão armada e formação de quadrilha. Cumpri a minha pena no interior de SP.

Estar preso é como viver um dia interminável. Tiram sua liberdade, e você fica dias sem aprender nada. É um pesadelo, no qual sair em liberdade é como acordar.

E quando a gente sai, tem a sensação de que tudo ainda está como quando deixamos. Acompanhando a crise dos presídios, vejo que a situação dos encarcerados não é nada muito diferente do que eu vivi. Muitos não sabem nem ler e saem sem nenhuma formação ou perspectiva de vida.

Vi morte, vi brigas, apanhei, conheci os maiores integrantes de facções criminosas. Dormi sem roupa no chão das celas, sem colchão. Mas foi na prisão que virei um rato de biblioteca. Cumpri minha pena, em torno de cinco anos, e fui solto em Presidente Prudente, onde vivo até hoje.

Em liberdade, fiz um supletivo e logo depois ganhei uma bolsa de estudos para cursar pedagogia. Decidi que queria mudar. Recentemente, revi amigos de 20 anos atrás que não saíram do lugar. Acho que as pessoas precisam mudar diariamente. Precisam viver um processo de transformação diário. A todo momento, precisamos ser alguém novo.

Passei dias da minha vida preso, baleado em uma cama de hospital ou usando droga. Hoje curso mestrado em educação e sou professor.

Além de ministrar palestras para egressos do sistema penitenciário, suas famílias, e estudantes de ensino médio e superior, toco projetos de incentivo a leitura arrecadando livros para escolas e comunidades –desde 2011, já foram mais de 20 mil.

Não me reergui da noite para o dia. Esse processo deveria começar no período de detenção, mas lá o único interesse é punir e parece que tudo é feito para dar errado. Mesmo assim, superei as adversidades e mudei de vida para transformar outras.

 

Fonte: Folha de S. Paulo
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